Perdemos a capacidade de nos importar?
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O discurso dilacerante da mãe periférica enterrando o filho que saiu para uma festa junina e a PM assassinou sem mais nem menos. Mais uma jovem esfaqueada fatalmente pelo namorado. Imagens de crianças palestinas entre escombros, mortas por bombas ou pela fome planejada. Imigrantes arrastados à força por policiais fortemente armados pelas ruas estadunidenses e jogados em campos de detenção. Crianças levadas pela polícia imigratória em algemas. Trump avisando que é só o começo. Los Angeles queimando por dias e bairros inteiros incinerados. Humorista banalizando pedofilia e berrando que é seu direito sagrado fazer graça com o que bem entender. Vinte mil criança de até 13 anos virando mães todos os anos depois de forçadas a carregar uma gravidez indesejada fruto de um estupro.
A vida segue. Não há revolta, não tem barulho. Parece que tudo está dentro da normalidade. É assim que é. Circulando.
Mas não é assim que é; é assim que foi construído. Nosso modo de vida é uma produção histórica.
A construção de um "outro" que nos ameaça é a base dessa engenharia. A banalização de algumas mortes e a desvalorização de algumas vidas é projeto. Um projeto idealizado há séculos via tecnologias desenvolvidas e aperfeiçoadas pelo colonialismo. Práticas coloniais que se tornaram mecanismos de poder e que são aplicadas hoje contra a população.
Trump, Milei, Orban, Netanyahu. Mas também os "bonzinhos". No Brasil de Lula a polícia segue matando os corpos de sempre e nada acontece. Herus Guimarães Mendes foi assassinado por quem deveria protegê-lo e por isso mais uma mãe preta teve que fazer o indizível: enterrar seu filho. Não há revolta.
Brasil, como diz Vladimir Safatle, é o nome que se dá a uma forma de violência. Brasil é a constituição em estados de uma tragédia institucional, política, social.
Isso porque o colonialismo não é só um sistema de dominação e de exploração localizado na história; ele é um projeto de constituição subjetiva que se perpetua pela aplicação do tratamento colonial a uma parcela da população.
Como?
Criando a consciência de que existem pessoas que não podem ser consideradas seres humanos. É o processo de construção da alteridade radical. Do inimigo. Da ameaça. O corpo do outro como território a ser explorado e extirpado.
A questão é que não é simples criar um consenso como esse.
É preciso aparatos ideológicos e aparatos de poder para a criação desse absolutamente outro. Quem faz isso? Os aparelhos culturais e sociais: mídia, intelectuais, instituições, Igrejas, famílias.
Nasce o negro, a mulher, o indígena, o racializado, o favelado. A esses cidadãos passa a ser atribuído um tipo de comportamento que vai ser narrado como ameaçador ao modo de vida universal.
É a relativização do valor da vida. "Morreram vinte em ação policial na favela". Assim é feita a manchete. Sem nome, sem direito a luto, sem responsabilização.
Em que momento a vida pode ser relativizada sem que essa relativização pareça desumana?
Na guerra.
Não estamos em guerra? Pois inventem uma para que possamos seguir matando sem causar revolta. Guerra às drogas. Guerra contra o terrorismo. A lógica da guerra sem fim.
Não é por acaso que alguns políticos fazem questão de chamar morador da favela de potencial narco-terrorista. A linguagem está legitimando o tratamento permitido em guerras. Só resta eliminar esse ser abjeto. A existência dele me ameaça. A mim e a minha família.
A tortura se torna assim uma tecnologia estatal. Cria-se mais do que o desprezo pela morte desse outro: cria-se o gozo.
O Brasil é isso. Uma classe média que regozija a morte dos corpos matáveis. Políticas econômicas que produzem legalmente a morte e o gozo com a eliminação dos corpos descartáveis são então vendidas como necessárias.
Reformas trabalhistas precarizam ainda mais o trabalhador, teto de gastos, responsabilidade fiscal. Tudo entra nessa conta. É a democratização do direito de eliminar os elimináveis, de bala ou de fome. O poder que conhecemos hoje está constituído para nos destruir. Mas, antes de fazer isso, ele vai nos convencer de que precisamos ser destruídos. Numa jogada magistral, ele vai nos persuadir a ir às ruas lutar por nossa própria morte.
Volto a Herus.
Herus Guimarães Mendes era torcedor do Flamengo. O pai e a mãe se vestem em rubro-negro para chorar e denunciar o assassinato do filho. Herus era apaixonado por seu time. O Flamengo perde um dos seus. Sim, o futebol está envolvido em tudo porque ele é parte fundante dessa nossa identidade e por isso deveria se sentir obrigado a fazer alguma coisa a respeito.
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